"Vocês estão pegando a Centopeia Humana do conteúdo bem no fim da linha"
Ao pedir pra não receber mais qualquer imagem gerada por IA do seu pai, Zelda Williams, filha de Robin Williams, dá uma série de chutes na cara e socos no estômago de quem ainda considera esse tipo de coisa normal

Quem já teve de lidar com a morte de alguém próximo sabe o quão complicado que é. E nem digo pela dor que a gente sente, apenas, mas por tudo o que a gente precisa resolver enquanto sente essa dor dilacerante e porque depois a gente tem uma bola de sentimentos gigante nas mãos que não sabemos onde colocar, o que fazer com ele.
É o tal do luto, que nunca vai passar, só não vai nos ocupar tanto assim. Não que fique menor, pelo contrário. A gente é que cresce, a gente é que segue em frente, a gente é que aprende a lidar. O sentimento guardado está lá, pra sempre. É nosso.
Tem gente que transforma esse sentimento em ações, em tatuagens, em objetos, em arte. Eu, por exemplo, espalhei adesivos com um desenho da minha Doguinha por aí, além de tatuar um memorial muito significativo pra mim bem na mão que ela exigia que ficasse o maior tempo possível nela. Tatuei também a maior ligação que tive com o meu pai (e até já escrevi sobre isso aqui). Tem gente que comissiona artistas pra que eles coloquem gente que já se foi em fotos mais novas, que façam desenhos e pinturas juntando gerações que nunca se encontraram. E podemos, claro, lembrar das tradições mexicanas cheias de cor, música, comida e, acima de tudo, alma.
Alma, aliás, é o que há de comum nisso tudo. Alma de quem faz, de como faz. A empatia. O sentimento.
Vieram então os LLMs, populares IAs, que começaram a adicionar camadas nessa história. Adicionaram movimento, adicionaram voz e adicionaram uma morbidez muito estranha em pouquíssimo tempo e ainda menos cliques. De repente, você podia ter um vídeo do teu pai te abraçando no seu Instagram. Um recado da sua mãe te dizendo que ela tem muito orgulho da pessoa que você se tornou. Seu doguinho de infância brincado com seu filho recém-nascido. Jesus abraçando você antes de sair voando com o Papa Francisco.
Entendo o impacto disso pra algumas pessoas, mas penso que é bem triste. Outro dia tava ouvindo uma vó contando que mostrou pro netinho imagens geradas dele usando uniformes de super-heróis e o moleque entrou em parafuso. De onde vieram aquelas roupas? Era ele, ele se reconhecia, mas ele não tem aquilo!
Também não é seu pai, também não é sua mãe, também não é o seu doguinho. Não é ninguém, além de um negócio absolutamente sem alma que mexe com partes do seu cérebro que você talvez nem soubesse que tinha. Muito é culpa da novidade, aquela coisa Guerra dos Mundos, eu sei. Mas não tem graça.
Não tem nenhuma graça.
Essa semana, Zelda Williams, a filha do saudoso Robin Williams, postou nos stories do seu Instagram um desabafo completamente putaça, 800% full pistola, com essa história de inteligência artificial sendo usada pra gerar imagens e sons parecidos com a de pessoas que morreram e que a gente sente falta. Porque, afinal de contas, pra muita gente é só um ator. Pra ela, é o Pai dela. Com letra maiúscula.
Na série de dois stories, Zelda começa até tranquila, pedindo que "por favor, apenas parem de me mandar vídeos de IA do meu Pai. Parem de acreditar que eu queira ver ou que vou entender, eu não quero e não vou. Se você só tá tentando me trollar, eu já vi pior, bloqueio e sigo em frente. Mas por favor, se você tem alguma decência, apenas parem de fazer isso com ele e comigo, com todo mundo até, parem. É idiota, é perda de tempo e energia e, acredite, ele NÃO ia querer isso."
Aí vem a série de verdadeiras canetadas que basicamente resolvem qualquer tipo de argumentação sobre IA e LLMs. "Assistir aos legados de pessoas reais sendo condensadas em 'isso vagamente para e soa como eles, então é o suficiente', só para que outras pessoas possam produzir marionetes horríveis no TikTok é enloquecedor. Você não está fazendo arte, você está fazendo salsichas nojentas e ultraprocessadas com as vidas de seres humanos, com a história da arte e da música, e enfiando tudo pelas goelas das pessoas esperando que elas te deem um joinha e curtam. É nojento."
Ela então finaliza:
"E pelo amor de TUDO, parem de chamar isso de "o futuro". IA é só o passado sendo mal reciclado e regurgitado pra ser reconsumido. Vocês estão pegando a Centopeia Humana do conteúdo bem no fim da linha, tudo enquanto o pessoal da frente ri e ri, consome e consome."
Ouch.

Quando você faz um prompt pra ter um vídeo do seu avô fazendo um cafuné em você, é uma questão absolutamente sua. Quando você gera vídeos com imagens e vozes baseadas numa pessoa, famosa ou não, e envia, sem qualquer consentimento, pra filha dessa pessoa, olha... se já dá pra dizer que falta alma em gerar uma imagem sem alma, o que a gente diz sobre quem tem uma atitude dessas? É uma agressão, um abuso, uma violação. Colocando em outros termos, é o equivalente a uma foto de piroca não-solicitada. Não existe qualquer motivo pra fazer isso, nenhum. "Ah olha só esse vídeo do seu pai dizendo que te ama" enfia no teu cu, bicho. O que ela e o pai dela conversaram tá conversado, entre eles, e pra sempre estará no meio daqueles sentimentos que não diminuem, mas que a gente cresce e se desenvolve em volta. E, acima de tudo, não diz respeito a você.
Como disse aqui no caso daquela empresa que gerou uma personagem que não teria qualquer vontade e poderia fazer o que quisessem com ela (o que eu gostaria muito de ver quem defende "consciência de IA" abordar), enquanto a gente não olhar mais criticamente para esse tipo de coisa e sempre achar que tudo bem, que é tudo mágico, o caminho que teremos pra seguir é assustador.
E eu nem falo sobre a bolha gigantesca que vai estourar num futuro próximo. É uma questão de humanidade mesmo.