Por que caralhos a gente ainda tá falando sobre Tilly Norwood?

Nem uma semana que esse nome apareceu e já tá há tempo demais sendo comentado

Por que caralhos a gente ainda tá falando sobre Tilly Norwood?
Foto: Reprodução / Instagram

Pelas próximas semanas, você vai ouvir falar mais do que o necessário sobre Tilly Norwood. Ela tem uma conta no Instagram, portais estão falando sobre ela no Brasil e no Mundo, tem um monte de cabeça flutuando no TikTok reagindo a vídeos e até o Sindicato dos Atores de Hollywood se viu obrigado a se pronunciar sobre esse assunto que está "dividindo" e "promete mudar Hollywood para sempre".

Antes de qualquer coisa, e o mais importante de tudo: Tilly Norwood não existe. Não é que ela não é uma atriz, como estão tentando vender. Ela é uma personagem gerada por computadores que consomem uma quantidade absurda de energia e água, usando a imagem de milhões de pessoas, incluindo, provavelmente, a minha e a sua. Ela é tão humana quanto todo o elenco do filme Carros ou um dinossauro de Jurassic Park.

Ela não atua, ou atuaria, em qualquer série ou filme. Ela seria apenas animada, tal qual Eva Byte. Linhas de código dizem o que ela faz ou o que ela não faz, o que deve fazer e não deve fazer e temos uma resposta. Sim, ela pode responder aos tais prompts, mas a Alexa também pode e quem tem uma sabe como que funciona. Não é nada demais hoje em dia.

Personagens animados já existem há muitos e muitos tempos na história do audiovisual. O que muda é a tecnologia e o fato de que, desde os tempos de Branca de Neve até Flow, passando pelas pixel art dos joguinhos independentes, existem mãos humanas envolvidas. Existe sutileza. Sentimentos.

Vejo muita gente comparando essa onda de IA generativa com outros grandes momentos da história da humanidade, relembrando como pessoas se recusavam a usar a Internet, se recusavam a usar telefones celulares, se recusavam a usar computadores e por aí a gente vai descendo pelos anos. De fato estamos num momento em que algo novo apareceu e evoluiu muito rápido e sim, tem gente que se recusa a usar mesmo quando pode facilitar seu trabalho e, de certa maneira, subverter o capitalismo. Mas quando a gente fala de coisas como "versão estúdio Ghibli" ou "eu e não sei quem numa foto Polaroid", a reação positiva assusta. Mas são as pessoas, eventualmente podemos deixar as pessoas se divertirem.

O que não dá pra suportar mais, e aqui eu resgato esse vídeo do Felipe Vassão aqui sobre BLOW RECORDS, é a mídia de maneira geral repercutir essas coisas como se fossem as grandes novidades que vão mudar o universo. Primeiro que não vão, a gente ainda tem humanidade suficiente pra realmente impedir que isso aconteça, de um jeito ou de outro. Segundo que repercutir sem qualquer tipo de questionamento ou análise é que pode mudar coisas e o motivo é simples: esse rolê todo é bastante perigoso.

Quando essa praga de IA me fez sentir culpa por gostar do que eu gosto
BLOW RECORDS é bom demais, mas vem de um lugar que me deixa desconfortável, pra dizer o mínimo. Até conversei com meu amigo funkeiro-cult Hanier Ferrer pra ver se aliviava, mas não deu. Só me restou uma coisa, então…

Já ouviu falar em jornalismo declaratório? É quando um site, jornal, revista, conta de Instagram, X, publica "Pessoa horrível afirma coisas horríveis", sem contraponto, sem nada, apenas ampliando aquelas falas. É a mesma coisa. Recentemente o presidente dos Estragos Unidos discursou na ONU e falou um monte de absurdo. Um exemplo da repercussão? "Trump diz que mudanças climáticas são a 'maior mentira', em discurso na ONU". Chama a atenção, gera o compartilhamento, tá ótimo. Pra quem lê só isso, e muita gente só lê realmente isso, pronto. O mesmo equivale a chamar Tilly Norwood de atriz ou tratá-la como se fosse uma pessoa e não uma animação sem qualquer alma, sem qualquer coisa que faça parecer que ela está de fato viva. Um modelo 3D, se preferir, já que dá pra colocar em diversos cenários. Ok, um monte de zeros e uns, nada além disso.

É inegável o nível de realismo, ainda que alguma coisa pareça errada – o famoso uncanny valley. Mas enquanto a gente tratar esse tipo de coisa como algo mágico e não como um serviço vendido por alguém ganhando muitos e muitos dinheiros sem preocupação com ética, vai todo mundo cair nessa historinha. Ano que vem tem eleição, gente, seus corpos estão prontos?

Enquanto isso, aquela imagem lá de cima é uma foto. De verdade, de uma pessoa real. É a influenciadora belga Shauna Dewit, que sei lá... achei parecida. Mas nesse caso talvez não seja só um caso de doppelgänger, né?

Chega de Tilly Norwood, já deu.