Ran, Ghost of Tchutchuquinha, Ran!
Nem só de Pokémons, mangás e apagamento de uma história de colonialismo violento vive a Terra do Sol Nascente

Deus me dibre um dia ser rotulado como cinéfilo ou alguma atrocidade do tipo. Aprecio igualmente tanto a filmografia de Jean-Luc Godard quanto grandes obras como Cara, Cadê meu Carro? e Street Fighter - A Batalha Final (mentira, nunca vi nada do Godard). Mas é sempre um pouco descaralhante assistir a um clássico e ver por quê são clássicos – uma vez que nenhuma película estreia com essa pretensão, essas bagaças fizeram por merecer no caminho. Eu assisti a O Mágico de Oz quando era muito criança, então é provável que eu estivesse prestando tanta atenção ao filme quanto ao torrão de terra que estava comendo. Reassisti recentemente a fiquei estupefato com o quanto não apenas o cinema, mas a cultura pop em geral bebeu dessa fonte. As referências visuais, as citações, as músicas. Cada cena uma sucessão de “osh, até isso veio daí?!”
Esses dias finalmente venci meu ranço de filmes longos pra tirar Ran da minha watchlist e tive a mesma sensação. Não necessariamente pelo filme em si - um dos últimos da carreira de Akira Kurosawa, lançado em 1985 - mas pelo contato mais atento que tive com o cineasta. As maquiagens, o figurino, os enquadramentos, a fotografia, a cinematografia. Todas essas coisas que normalmente absorvemos meio que sem pensar muito sobre elas, em Ran por algum motivo parecem VIVAS, pulando da tela. É como se as técnicas de cinema tivessem sido moldadas a partir do filme, e não o contrário.
A história é inspirada em King Lear, de Shakespeare. Lord Hidetora (Tatsuya Nakadai), já em idade avançada, reúne os três filhos para passar o bastão de seu reino, ingenuamente acreditando que os herdeiros iriam administrar a bagaça toda em harmonia, como três flechas juntas que não se quebram, ao contrário de uma. Porém o primeiro choque de realidade já estapeia o velhote quando um dos filhos mete o joelho nas três flechas e mostra que elas podem se quebrar sim com o devido empurrão. O caçula tenta avisar ao pai sobre a insanidade daquilo e é deserdado.

Pois como era de se esperar a partir daí, os outros dois filhos entram em guerra pelo monopólio da força. Hidetora, despido de seu poder, vê sua influência cena a cena ir pelo ralo junto com sua sanidade, enquanto os conflitos entre os castelos só aumentam. A batalha final onde o kissuco ferve de uma vez por todas traz uma grandiosidade que é incrível ter sido alcançada tendo sido feita com zero efeitos de computador.
Toda essa trama é contada a partir de recursos visuais que, realçados por todas aquelas tecnicalidades cinematográficas, criam uma enorme sequência de cenas que a qualquer momento você pode dar um pause, um print e ESCATAPLAFT, um wallpaper. Certamente não foi o longa-metragem com a maior profusão de cores que eu já vi, mas parecia que eu estava assistindo um filme realmente colorido pela primeira vez. Esse resultado não poderia ter sido diferente quando próprio storyboard do filme foi pintado à mão pelo próprio Akira.

Conforme eu ia assistindo ao filme e tendo essas sensações, essa enxurrada de acontecimentos duros, crus, frios, retratados com uma estética belíssima iam quase me despertando uma certa familiaridade. Elementos como as cores, estampas, a maquiagem (que demarca de um jeito quase caricatural o declínio físico e mental do ancião) e até o próprio VENTO se tornam mais que elementos de composição e assumem praticamente o papel de personagens da trama. Onde eu já vi essas porras? É a primeira vez que dou play numa obra de Kurosawa. Aí veio o estalo: Ghost of Tsushima.