Quando essa praga de IA me fez sentir culpa por gostar do que eu gosto
BLOW RECORDS é bom demais, mas vem de um lugar que me deixa desconfortável, pra dizer o mínimo. Até conversei com meu amigo funkeiro-cult Hanier Ferrer pra ver se aliviava, mas não deu. Só me restou uma coisa, então...

Eu sempre disse que não tinha nenhum guilty pleasure. Apareciam aquelas correntes no Instagram, no Twitter, eu fazia questão de reafirmar que nada me fazia sentir culpa por gostar. Eu só gostava. Ponto.
Um filme do Zack Snyder? Gostei em algum momento de dois e um deles é Sucker Punch, que eu reassisti depois de um tempo e minha nossa, que horror. Lindo, o filhodaputa. Mas que desgraça.
Fui perguntar pros meus companheiros de endcredits. sobre o que eles consideram que ~deveria ser um guilty pleasure meu e, pra comprovar o que disse acima, menino André Mello resumiu dizendo que eu sou "meio boca aberta quando gosta ou faz algo pra ter guilty pleasure". Até lembrou que eu gosto de ver mulheres cantando gutural, ao mesmo tempo que ouço Dua Lipa e Marina Sena. Existe, claro, uma outra camada aí... mas tá tudo certo. Ou pelo menos eu pensei que estivesse.
Tem algum tempo que eu comecei a ouvir no TikTok três músicas que eram absolutamente deliciosas aos ouvidos. Mesmo. Melodias ali das décadas de 70 e 80, dançantes e completamente grudentas. Me lembrou muito Sr. Tempo Bom, de Thaíde e DJ Hum, os grandes clássicos do Rap Brasil e o que se seguiu, tipo Claudinho & Buxexa.
As letras eram um pouco pesadas demais pra terem sido lançadas naquela época em que tudo era mais poesia, tipo o Côncavo e o Convexo do Roberto Carlos. "Eu, tu, nós bota nela / O bonde chegô / É os Predador de Perereca" numa canção de 40, 45 anos atrás? Bom, o Casseta & Planeta dizia "tô tristão, tô sofrendo pra caralho" em 1989, por que não? Com outra música invocando um "popotão", ao invés de "popozão", e se fosse assim naqueles tempos e eu que era absolutamente ignorante com relação a isso?
Foi então que me apareceu esse vídeo aqui do Felipe Vassão. Ele começa falando sobre "flipagem" de gênero de música, citando diversos projetos que já fazem isso há tempos, e flipa o assunto para o quanto a galera fica "noooossa" só por ser um projeto de IA, como se fosse absolutamente incrível do universo. Vassão cita inclusive outro vídeo seu no qual já falava sobre serviços de streaming oferecendo a possibilidade de "trocar" skins de música, tipo Beatles na voz do Prince ou qualquer coisa nesse sentido e enfim. Gosto muito do Vassão, dos conteúdos dele de maneira geral. Aprendi bastante coisa de um universo que sempre esteve um pouco à margem do meu interesse – consumo música, mas não tenho qualquer tipo de conhecimento muito profundo. Eu gosto ou não gosto e quero conseguir um dia tocar uma música inteira na bateria. Mas ele quebrou meu coração com esse vídeo.
Não pelo que ele diz e alerta, o que concordo absolutamente – The Baseballs é uma dessas bandas que flipam gêneros que eu gosto e conheço há uns 15 anos, no mínimo, por exemplo. Mas é que as tais músicas que eu coloquei na minha lista de músicas curtidas são "de IA". As vozes são de IA, geradas a partir de tantas outras vozes por aí; as melodias são coisa de IA, treinadas com músicas feitas por humanos em décadas específicas e que um "quero uma música assim" resolveu. E que não sai mais da minha cabeça. Que teve gente que viu naquele rolê de "músicas que seus amigos tão ouvindo" e me mandou mensagem com emoji de olhinhos pra saber se tá tudo bem, porque taí alguma coisa que foge do meu personagem. Que esteve no topo da minha linha do tempo do Spotify em Agosto.
Gostar de funk de fato não é a coisa que as pessoas mais associam a mim, mas também não deveria surpreender ninguém, já que eu gosto do que eu gosto e fim. Mas consumir coisa gerada por IA... eu me sinto realmente culpado por gostar.
O criador da BLOW RECORDS se chama Raul Vinícius e tem 22 anos. Como não podia deixar de ser nesse caso, estuda publicidade. Em uma série de entrevistas para veículos como G1, Estadão e outros, ele conta que gasta cerca de R$ 1 mil por mês pra gerar as músicas e vídeos, e que cada uma delas demora cerca de 4h pra ficar pronta.
A ideia desses "flips", que usa timbres de voz de gente como Marvin Gaye, Cassiano, Tim Maia e James Brown, surgiu na época da treta entre Kendrick Lamar e Drake e tem a aprovação de quase todos os envolvidos nas músicas originais. Eles, aliás, aparecem creditados corretamente no Spotify, e toda monetização só acontece depois que dão um ok.
Nas matérias, como diz o Felipe Vassão naquele vídeo que tirou de mim a ilusão de que eu tava ouvindo uma canção original de décadas atrás, o que se vê é muita empolgação com o fato de que a BLOW RECORDS ser formada apenas por ele, por sua mãe nem saber o que ele faz e por ele usar algumas poucas ferramentas.
Eu tou tentando odiar menos as coisas. A vida me deixou cínico demais com o que não deveria me afetar tanto, ou não deveria me afetar at all. Sei o quanto isso me custou, pago o preço e se tou aqui nesse exato momento, nesse exato lugar, é por conta disso. Não me arrependo de nada, é bom deixar claro! Mas eu talvez não ficasse falando de Batman VS. Superman em toda oportunidade,se eu pudesse voltar no tempo. Nem inventando oportunidade pra falar, pra ser sincero.
Mas com LLM (Large Language Models ou, em português, Lero-Lero Machines), que todo mundo chama apenas de IA, não dá. Eu não consigo aceitar. Eu abomino os ChatGPT da vida e penso sim, que eu sou diferente de quem usa essas pseudo-ferramentas pra gerar texto, pra fazer ilustrações e outras coisas que as pessoas criam com talento e experiências.
Tipo música.
Acredito que LLMs possam ser ferramentas contra o capitalismo, sim. E, nesse caso, vou usar e incentivar o uso. Pra arrumar seu currículo, pra fazer uma tarefa mais rápida, de pastelaria, no trabalho, enfim. Mas não, a LLM não veio pra ficar. Marisa Maiô até pode ter um texto engraçado, mas a existência daquele conteúdo é problemática em uma série de níveis, além de esteticamente feia e sem absolutamente nenhuma alma. E a LLM não sabe de tudo; usar como ferramenta de busca é um erro gigantesco e pode acabar em morte.
Sim, eu julgo quem consome esses conteúdos, quem lê livros gerados assim, que entra nessas modinhas de seguir um estilo de algum artista que preferia um braço no cu a fazer qualquer coisa com IA. Realize o quanto eu tou me julgando por estar gostando e estar ouvindo BLOW RECORDS.
No Spotify, ainda por cima... 😀🔫