Os carros de Ainda Estou Aqui e o mundo em que vivemos

O Kadett 68 vermelho dirigido por Fernanda Torres no filme é um bom exemplo de como as coisas estão diferentes pro cinema e pra sociedade como um todo

Os carros de Ainda Estou Aqui e o mundo em que vivemos
Opel Kadett L 1968, que deu um trabalho enorme pra produção encontrar

Com toda a animação gerada pelas indicações ao Oscar de Ainda Estou Aqui -- animação e um genuíno orgulho -- tudo que havia sido publicado por aí voltou a aparecer, aproveitando o hype, né? Normal, na minha época de JUDAO.com.br a gente fazia a mesma coisa. "There's a texto sobre esse assunto for that!", e se não tinha a gente tentava fazer com que tivesse. Com padrão de qualidade, claro, mas surfar na onda era necessário.

Uma dessas coisas sobre o filme que acabaram me impactando só agora, além do vídeo da Fernanda Torres falando sobre o Tio Paulo, foi uma matéria sobre a gravação de uma cena do filme, que fechou uma avenida no Leblon, Rio de Janeiro, e colocou naquele espaço 25 carros antigos, alugados e/ou levados por colecionadores (que, pensando agora, talvez não sintam o mesmo orgulho pelo filme). A cena em questão é a que a família Paiva encontra o doguinho Pimpão.

No total foram 400 diárias (!) de veículos, incluindo dois ônibus, uma ambulância, três motos e sete caminhões, tudo dos anos 1970. Até carrinhos de cachorro quente e sorvete dessa época podem ser vistos nessas cenas.

A matéria que eu vi e de onde tirei essas informações é essa aqui, mas depois acabei encontrando algumas outras que falam também da raridade de um modelo específico (um Opel Kadett L 1968, que a família Paiva de fato teve), da dificuldade de encontrar carros dos anos 1970, de como gravar essas cenas era complicado, já que envolvia esvaziar a areia da praia e o calçadão pra não ter nenhum viajante do tempo aparecendo e essas coisas que parecem magia, mas são apenas o trabalho gigantesco do time de produção.

Noite dessas tava no carro, banco do passageiro, pensando em qualquer coisa que não na vida, quando me chamou a atenção na pista ao lado uma sequência de uns 10 carros brancos. Nenhum exagero aqui, eram todos da mesma cor, e a sequência só foi quebrada por alguns prateados e pretos e em algum momento apareceu um vermelho alaranjado -- provavelmente um Kwid, igual o da minha mãe inclusive, que era como uma vírgula naquela fila monocromática e absolutamente sem graça.

Eu já tinha lido algo ou visto um vídeo no TikTok sobre a falta de cores nos carros hoje em dia, em comparação a tempos mais antigos, e embora eu tivesse reconhecido mentalmente a ideia, nunca tinha me atentado ao quão ridículo isso tinha se tornado. O quanto Henry Ford fez não só com que os carros dominassem as ruas, mas como, nesses últimos tempos, ninguém mais se importasse com eles. São caixas de metal com quatro rodas que ocupam um espaço enorme, contribuem para esse calor que você que não gosta de calor tá sentindo e... só.

“Ah, mas os Suasticars são elétricos” grande bosta, olha pra isso. Lembra quem fez.

Segundo essa matéria do Jornal da Band, mais de dois terços dos carros são brancos, cinzas / prateados ou pretos; meio terço é vermelho e as outras cores todas estão dentro do outro terço. Entre os motivos, o preço diferenciado das cores — o que aliás fez com que toda a matéria parecesse (risos) um grande publi da BYD. ;)

Eu sabia que carro branco era mais barato e isso até explica o aumento de carros dessa cor circulando por aí. Dava algumas risadas ao ver aquela galera, pseudo-rica, do alto dos seus SUVs e outros carrões brancos, porque claramente era uma coisa de "temos dinheiro, mas não o suficiente" típico de quem acha que o Boulos vai tomar as casas ou que seria um dos super-ricos taxados.

As outras cores mais usadas, preto e prateado, o pessoal escolhe muito pensando no valor de revenda. Por ser mais básico, por não ter tanto desgaste, por todo mundo só enxergar o mundo desse jeito: monocromático e pensando no que vai conseguir ganhar dali uns trocentos anos, ao invés de aproveitar o agora. E olha que eu digo isso sem sequer gostar de carro! Gosto da utilidade, mas não dirijo, não tenho pretensão e fico muito feliz sentado dentro do 856R ouvindo música, jogando Marvel Snap e vendo pessoas.

Av. Paulista nos anos 1970

Mas isso tudo me leva pras histórias que estão sendo contadas hoje e serão um dia. Arte. Temos as novelas, e elas pelo menos mostram uns carrinhos amarelos, quando mostram, pela vantagem de serem filmadas onde são. Filmes? A gente tem alguma coisa parecida com "meu carro é vermelho" na música, ou vamos nos contentar com camaros amarelos?

Só perguntando mesmo, porque quando eu vi o texto / vídeo sobre TikTok, eu imediatamente me lembrei das transições de tempo e local de pornochanchadas que assistia no Canal Brasil. Eram quase sempre em alguma avenida no Rio de Janeiro, com a praia de um lado e um monte de carro colorido de outro, exatamente como Ainda Estou Aqui fez. E se entre tudo o que eu vi de pornochanchada uma das grandes lembranças é justamente a das cores dos carros, tem algo errado. Não comigo, nem com aqueles filmes. Não só com esse mercado e indústria, mas com o mundo que, nesse exato momento, caso alguém ainda não tenha percebido, não está só ficando cada dia mais assustadoramente conservador e fascista, mas desesperadamente sem cor.

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Este texto foi publicado originalmente na edição #6 da newsletter tardigrado, no Substack, em 27 de Janeiro de 2025. Pretendemos sempre republicar, aqui no endcredits., textos escritos por nós em outros veículos como forma de preservação e, claro, de olho na audiência rotativa da internet. ;)