Dois segundos
Esse texto é uma pequena crônica sobre um constrangimento muito breve e particular que provavelmente não é do interesse de nenhum de vocês.

Envelhecer é um espetáculo por vezes nobre, mas por muitas outras apenas doloroso - emocional e literalmente. Às vezes até patético. Nas primeiras quatro décadas da minha existência ouvi que a vida começava aos 40, mas as principais coisas que bateram aqui depois dessa marca foram a papada e a frequência com que sinto dores completamente aleatórias nas costas. Mas com elas vem uma espécie de sabedoria empírica que permite que você enxergue com mais clareza o tamanho do buraco que a gente tá metido. E quando eu digo "enxergar" definitivamente não me refiro à capacidade do nervo óptico.
Eu era meio cegueta no ensino médio e detestava usar óculos, mas não se tem muita escolha com 3,5 graus de miopia em cada olho. Esperei por alguns anos ansiosamente a estabilização para poder fazer a cirurgia refrativa. Estabilizou, fiz, abandonei os óculos já ciente que quando estivesse na meia-idade ia precisar novamente. "Começa aos 40". Pff! Sabe o que começou pra mim nessa idade? Catarata. Operei ano passado dessa joça, aos 41, e não estou nem zoando. Não sei se você, que está lendo isso, é ancião como eu e já passou por esse checkpoint, mas funciona da seguinte maneira: nesse procedimento, eles substituem a lente natural do seu globo ocular, que tá toda embaçada, por uma artificial. Itens artificiais custam dinheiro. Ou você gasta os olhos da cara (há!) comprando uma lente intraocular fodona que vai eliminar a necessidade de óculos futuros ou, como no meu caso, opta por uma mais em conta e tudo o que suas vista teriam para piorar naturalmente já pioram artificialmente de uma vez. Mas pelo menos a catarata tá resolvida. Escolhas.
Mas como era só em um olho e o outro ainda compensava tanto para longe como para leitura, procrastinei essa e deixei os óculos para o Leonardo do futuro. E o futuro eventualmente chega.
Uma característica interessante do envelhecimento é que ele acontece simultaneamente com as pessoas à sua volta, veja só! Por mais que seja divertido ver que aquele moleque metido a skinhead que você conheceu na adolescência hoje esteja ironicamente calvo, os entes queridos também já não são mais os mesmos. Como sua mãe e como seu pai, já diria José Serra. Aquelas fortalezas já demonstram diversas fragilidades, você percebe por experiência própria que aquelas pessoas que aparentavam ter a resposta pra tudo só fingiam bem (ou erravam com muita convicção) ou, como você ( ͡° ͜ʖ ͡° ), não fazem muita ideia do que fazer a seguir.
Seja como for, você observa uma inversão gradativa de papéis no que diz respeito a cuidados. Você é quem os lembra de vestir a blusa porque tá esfriando, você é quem fica puto porque saíram de casa sem levar o celular, você que observa se tomaram o remédio direitinho e é você quem gerencia a rotina de acompanhamentos médicos. E essas idas ao médico às vezes acontecem sem aviso prévio porque a véinha aparece repentinamente gemendo "aiai minha barriga tá doendo" pra só aí você descobrir que ela está completando quase 4 dias de prisão de ventre. Você instantaneamente larga tudo o que está fazendo pra resolver a bagaça.
Pelo lado bom, o PS do plano dela é pertinho de casa. Pelo lado ruim, é uma tarde de sábado. Poderia só passar numa farmácia, comprar um laxativo e observar do conforto da minha cadeira o grande espetáculo da natureza acontecer? Poderia. Mas a essa altura da vida você sempre tem o diabinho do cuidado sussurrando "vai que?" na sua orelha. Então estou lá com mamai, os únicos assentos disponíveis na triagem eram desconfortavelmente próximos a uma poça recém-cometida de vômito infantil. Poderia ser melhor, mas poderia ser pior, então cheiro minha parte em silêncio até que somos liberados para a segunda espera, aí sim para o clínico.
Cara, eu não sabia que as pessoas gostavam tanto de ir ao pronto-socorro numa tarde ensolarada de sábado. Vai empinar uma pipa, sabe? Vai tomar um sorvetinho. Deixa o atendimento médico livre para única e exclusiva conveniência da minha necessidade. Oras. E espera. E mamãe se queixa da dor. E se queixa da espera. E diz que não tá mais doendo tanto assim. Quinze minutos depois está incomodando de novo. Você dá o terceiro refresh em menos de dois minutos na timeline do Bluesky e não tem ninguém postando seios. Passa uma criança chorando e eu espero que não tenha sido o mesmo pobre coitado do vômito. Quarenta minutos de espera. Cinquenta. Uma hora e vinte. Você começa a julgar o enfermeiro porque ele tá usando um ASICS vermelho e roxo. A TV tá passando Mionzera. A senha que não anda. O tiozinho da segurança repõe os copos descartáveis. Até você já começa a apresentar sinais de constipação.
PORRA, CHAMOU! VAI CORINTHIA!
Consultório 3. Aviso a véia, levanto, caminho em direção à porta, abro, e um fenômeno inesperado acontece.
São 17:35:24.
Eu inicio o movimento de giro da maçaneta. Uma força intangível atinge tudo o que me cerca: objetos, pessoas, micro-organismos, o próprio tempo. A folha da porta parece ter o peso de mil sóis com relação ao movimento, mas apenas o de um pedaço de madeira comum à aplicação de força que preciso fazer para abrí-la. É como se meu microcosmo fosse uma cena de Zack Snyder, mas sem eu ser um fiadaputa. A porta atinge um quarto de sua abertura e três cabeças iniciam um lentíssimo processo de rodopio. Um mosquito paira no ar como um colibri. O ponteiro dos segundos do relógio de parede está completamente estagnado. O pranto do moleque vomiteiro se torna um zumbido, como se algo tivesse esticado indefinidamente a própria onda sonora até transformá-la numa linha. Por quê eu consigo notar isso tudo? Uma maldição acaba de tomar conta da minha vida? Um raio silencioso atingiu meu corpo ao tocar o metal da maçaneta e agora cada instante da minha existência equivalerá a eras? Ainda é cedo para dizer, pois ainda falta bastante para a porta chegar a dois quartos de sua abertura total de 90º. Volto minha atenção às três cabeças, que avançaram sutilmente no seu movimento de giro e agora os seis globos oculares estão começando a mudar para a minha direção. Espera, mas por quê são três cabeças? É a consulta da minha mãe, deveria ser apenas uma: a que está presa ao pescoço do médico de plantão. Vamos dar uma festinha surpresa aqui e ninguém me avisou? Nosso aniversário é só em abril! Além disso a véia está com desconforto abdominal, mas que falta de consideração! Não, não é isso. Deve haver outra razão. Embora meus olhos e minha consciência estejam em seu ritmo normal, os movimentos do meu corpo acompanham o passo dos arredores. Os donos das duas cabeças que não são a do plantonista repousam sobre corpos que estão sentados às cadeiras dos pacientes. Um corpo jovem e outro idoso. O jovem estava com trajes informais, mas em bom estado. Seus chinelos estavam um pouco encardidos, mas isso é normal, os meus também estão. Da próxima vez compro uma Havaiana mais escura. A senhora que ele acompanha tem os cabelos grisalhos soltos e usava um vestido azul estampado com motivos florais. O mosquito-colibri está um ou dois milímetros à frente da posição que eu o vi pela primeira vez, há muito tempo, assim que entrei na sala. O rapaz do chinelo está segurando algumas folhas de papel enroladas como um tubo. Papéis idênticos aos que eu peguei na triagem. Eu viajei alguns minutos para o futuro e vi a mim mesmo? Não. Minha mãe não está usando vestido. São outras pessoas. Intrusos. O que fazem aqui? A senha era nossa. Era nossa vez, esperamos tão arduamente por esse momento. Minha mão ainda segura a maçaneta e agora a porta atinge finalmente metade de sua abertura. A cabeça do médico parou de girar, mas seus olhos continuam se movimentando em minha direção. Eles se posicionam por cima de seus óculos e iniciam uma expressão que unia a desaprovação de alguém que presencia uma atitude inadequada com o cansaço de um trabalhador que já viu muitas coisas. Seu olhar não exprime surpresa, ao contrário do meu. Parte da minha surpresa era ver que a caneta do clínico interrompeu seu movimento de escrita assim que notou minha presença, mais alguns milésimos-era e a ponta da esferográfica começaria a acumular tinta no ponto que tocava o papel da receita. Outra parte de minha surpresa era que aquele rosto me era familiar. Onde eu já vira aquele homem? Não, busco nos arquivos de minha memória e não é alguém conhecido. Ele se parecia com alguém, na verdade. Aquela menina do Tik Tok, como era mesmo o nome? Joyce! Ela sempre inicia seus vídeos com "Oi, meu nome é Joyce!". Muito conveniente, assim eu jamais esqueceria seu nome. O descamisado pai da influencer que sempre aparecia fazendo as gambiarras. Churrasqueiras feitas com palito de sorvete envoltos em papel alumínio. Guindastes portáteis feitos com gravetos e fios de nylon. Supercola feita com bicarbonato de sódio e chiclete mascado. O MacGyver do subúrbio. Era com ele que o médico se parecia. O doppelgänger do pai da Joyce me fitava com desdém por cima da armação dos óculos pretos. Eu começo a desconfiar que entre todas as aberrações daquela cena, a mais deslocada de todas era eu. Ensaio uma reação. Minha boca começa a se movimentar e o ar que sai dela forma sons. Meu cérebro queria dizer "Com licença, este não é o consultório 3? O monitor da sala de espera acabou de chamar pelo nome da minha mãe. Vejo que sua consulta ainda não terminou, teria havido um engano ao requisitar a entrada do próximo paciente?". Minha boca diz "ERRR... WOWROOWROWROWORPRRT?". O estalo me atinge como uma bala enquanto os seis olhos me observam atônitos. O mosquito ainda voa, a caneta ainda está parada sobre o papel e eu ainda seguro a maçaneta. Eu não deveria estar aqui. Por Deus, ainda bem que a consulta que eu acabei de invadir sem sequer bater na porta não investigava um prolapso de hemorroida. Por que ainda estou aqui? Puxe esta maçaneta, Leonardo! Faça o movimento contrário com esta porta imediatamente! Você com esse pescoço esticado para dentro do recinto tá parecendo a brontossaura Monica de Família Dinossauro! Mova-se! Eu começo a bater em retirada e conforme eu vou fechando a porta o mundo vai retomando seu ritmo. O pai de Joyce volta a mirar seu olhar através de seus óculos, a caneta retoma seu movimento, a porta já não se desloca como um transatlântico manobrando, o choro do garoto assume novamente sua cadência irritante. A porta se fecha e tudo se comporta normalmente. Os pés, os ponteiros do relógio, a água que cai no copo de plástico.
Agora são 17:35:26.
Eu olho novamente para o monitor que chamava as senhas de atendimento. Eu espremo o olho e vejo com um pouco mais de nitidez: Consultório 5.