A Odete matou um pouquinho de todos nós

É difícil desculpar a mediocridade quando ela vem surfando num tsunami de dinheiro

A Odete matou um pouquinho de todos nós

Eu nunca fui um sujeito muito noveleiro. Assisti a Vamp e Carrossel quando era criança, e já mais marmanjo assisti a O Beijo do Vampiro por uma questão de nostalgia vampírica e Kubanacan porque havia Danielle Winitz e porrada – e o Pescador Parrudo, evidentemente. E é isso. De resto, só as que eu absorvi em parte por osmose nos anos 90 quando ficava na casa de vovó para meus pais irem trabalhar. O fato é que embora o formato não me pegue porque eu não tenho paciência pra acompanhar uma hora diária de história por mais de uma centena de dias, reconheço que novelas são um patrimônio cultural nacional. Muitos outros países produzem novelas, mas a nossa sempre foi tipo HOLLYWOOD da parada. Produto de exportação, instrumento de soft power. Grandes personagens, grandes artistas, grandes produções, cidades cenográficas e efeitos especiais. Momentos memoráveis que são lembrados por décadas.

Um grande BASTIÃO da teledramaturgia brasileira foi Vale Tudo. Um hype imenso da música de abertura ao misterioso assassinato. Não deve existir uma única pessoa deste país que não tenha ouvido em algum momento da vida a pergunta "Quem matou Odete Roitman?". E a Globo, ciente do potencial de mobilização nacional da trama, que poderia ser ainda mais estrondoso em época de redes sociais, produziu um remake, como vocês devem ter notado.

Bom, como disse, não sou muito das novelas, mas sou um crackudo de rede social. De microblogging, pelo menos. E assim como não pude escapar de saber diversos fatos de pessoas como Davi Brito, Virginia e Deolane sem JAMAIS ter desejado, impossível escapar também de algo do tamanho de Vale Tudo. Chegava a ser um evento quase transcendental ver as pessoas da timelaje que acompanhavam diariamente a bagaça passar raiva TODO SANTO DIA das mesmas coisas: atitudes completamente imbecis dos personagens, do tratamento canalha que foi dispensado à personagem de Taís Araújo e sobretudo ao roteiro mais furado que uma fatia de queijo suíço metralhado. E como todos os dias as reclamações eram parecidas, eu só poderia pelo menos parabenizar Manuela Dias pela CONSTÂNCIA no equívoco. Mas tudo numa vibe Capitão Planeta dizendo "kkkk o problema é de vocês!".

Mas resolvi pegar a rabetinha do hype só pra saber quem matou a ricaça na nova versão. Meio compulsoriamente, porque eu estava na casa da consagrada no dia do capítulo dos interrogatórios e se eu não assistisse, ia apanhar. Cada suspeito tinha sua motivação, ok, show de bola. Como senti que rolou uma boa recapitulação dos fatos mais importantes dos mais de 150 episódios até ali, atiçou a curiosidade pra ver o desfecho, digamos, pouquíssimo promissor. Mais pelos risos do que qualquer outra coisa. Inclusive eu diria que essa é a chave para a felicidade: nunca jamais esperar absolutamente nada de bom. O que vier, se vier, é lucro. Quando soube então que foram gravados 10 finais diferentes, já estava bastante claro que, levando em conta o retrospecto, qualquer final que fosse escolhido teria um desenvolvimento lamentável e a profundidade de um pires. Muito provavelmente um copy/paste da cena inteirinha, mudando exclusivamente o dono(a) do dedo no gatilho. QUANTO MAIS esperar qualquer arremedo de construção personalizada que levaria da motivação ao ato.

Pois bem, chega o grande dia, 17 de outubro do ano do nosso senhor de 2025 e o último capítulo vai jogando uma série de desfechos apressados e meio óbvios. Aquela coisa de gente legal se dando bem, gente escrota sendo escrota até o fim sem aparentemente ter aprendido ABSOLUTAMENTE NADA, zero arcos de desenvolvimento de personagem. Mas aí é uma parada meio característica do formato, imagino. Como também é uma questão do formato todas as pontas serem amarradas de alguma maneira no último capítulo, como um grande e mágico alinhamento de astros de todas os 70 núcleos do enredo. Com seriados acontece a mesma coisa, mas bem, com temporadas de oito ou dez episódios são muito menos arcos a fechar.

Eis que chegamos à revelação ao momento tão esperado por toda uma nação! Diversos links ao vivo entrando nos intervalos como numa semifinal de Copa do Mundo. Marco Aurélio e sua tornozeleira eletrônica relembrando o fatídico dia, Odete em seus aposentos no Palace, ele pega a arma, atira e...

...Pronto.

Passa para a próxima cena como se tivessem acabado de descrever o sabor do lanchinho do novo Sugar Daddy de Maria de Fátima. Até eu, que tava ali sem pretensão alguma, sem ter passado mais de uma centena de horas em frente à TV, fiquei uns minutos indignado em silêncio olhando pra tela perguntando para o nada "....É isso?". Observo os comentários no Bluesky e o sentimento coletivo era o mesmo. Entregaram o que deveria ter sido o grande clímax dos últimos meses de uma produção que custou (e rendeu) milhões assim, que trazia uma tonelada de expectativa só com o título, como um despretensioso arrotinho.

E antes mesmo que as pessoas pudessem externalizar adequadamente todo seu arsenal de palavrões, vem o plot twist que encerraria a produção definitivamente. Até por uma questão até de coerência ele veio porco, raso, mal explicado, enfiado goela abaixo e insultando a inteligência de cada espectador.

"Ninguém tem coragem de atirar em Odete Roitman" - diz Odete Roitman ao lado do buraco de bala deixado por alguém que havia acabado de atirar nela, logo antes de tomar o segundo pipoco.

Eu não acho que uma história precisa pegar na mãozinha de ninguém e explicar cada detalhe, acontecimentos em aberto são inclusive uma potencialidade. Você preenche as lacunas, teoriza, revisita a história pra botar sentido. Indiana Jones não precisava literalmente desenhar o aviãozinho voando sobre um mapa pra gente entender que eles estavam viajando. Mas demanda uma má vontade um pouco além do aceitável pelo menos não TENTAR trabalhar melhor algumas questões como:

1. Se ela passou por cirurgia, o ferimento foi real. Se foi real, acho que a gente pode descartar a possibilidade de premeditação, colete à prova de balas com bolsinha de sangue falso, policiais e paramédicos plantados. 

2. Como a mulher sobrevive a um disparo quase à queima-roupa na barriga? Tem fator de cura essa CORVA? 

3. Como ela não sangrou até a morte depois de ficar horas jogada na cena do crime?

5. O saco de corpos do IML tinha um zíper interno anti-sequestro?

6. Por que ela acorda de um tiro num pulo como se tivesse sonhado que caiu da cama? NÃO É ASSIM QUE O CORPO HUMANO FUNCIONA, MANUELA.

7. Por quê operam a mulher num ESTÁBULO? Medicina do submundo é bagunça? 

8. O faz-tudo da bilionária só por precaução reservou uma mala de dinheiro vivo pra fuga? Porque desvio de cadáver, cirurgias clandestinas e aeronaves particulares devem custar algum dinheiro.

9. Pra onde ela vai fugir de helicóptero? Pra Maricá? Maricá é uma merda!

A lista vai e vai, vocês entenderam o ponto. Talvez eu só não tenha acompanhado o suficiente pra explicar alguns desses itens, ou talvez tenha sido só um trabalho meia-boca mesmo.

Todo esse contexto decepcionante faz a gente pensar nos rumos do entretenimento de maneira geral, indo muito além das telenovelas. Pelo menos metade de tudo o que chega no mainstream hoje é reboot, é remake, é replicação pasteurizada de coisas que já deram no saco (filmes de ominho, estou olhando para vocês). A gente não precisa ver o Simba renderizado no v-ray, nem do vigésimo Jurassic World ou do Toy Story 9: O Tataraneto do Sid Tacou Fogo em Nóis. TAMPOUCO um Vale a Pena Ver de Novo² de Renascer, Pantanal ou Vale Tudo. Podemos ter tudo isso? Sim, por quê não? Mad Max: Estrada da Fúria tá aí provar que é possível se apropriar de algo consagrado e fazer uma releitura interessante. Mas FAZ. A. PORRA. DIREITO. É perfeitamente possível aprimorar a arte, contratar gente talentosa e capaz, catapultar a criatividade com novas técnicas, tecnologias, recursos e alguns zeros a mais no orçamento.

É difícil desculpar a mediocridade quando ela vem surfando num tsunami de dinheiro.

O que acabamos vendo é uma infinita sucessão do caminho fácil e preguiçoso da repetição, mas sem o charme e o carisma da coisa nova. Da supressão da tentativa de ser diferente. É tudo obra criada pra atrair marcas comprando preciosos segundos de intervalo comercial, busca por cliques, views e product placement como CAUSAS, e não a consequência. Eu sei que posso estar soando como o tiozão com saudade de um passado idealizado que nunca existiu. Lá nos anos 80 a Marvel já estava criando Guerras Secretas com o intuito de vender bonequinho – depois que viram o que o George Lucas fez com Star Wars. O ponto é que as pessoas não deixaram de criar boas histórias, de ousar. A questão é que me parece que essas pessoas são mais e mais completamente engolidas por uma indústria feita para agradar acionistas e alimentar algoritmos. É o músico criando canções com um refrão breve e grudento pra virar dancinha no Tik Tok. É o quinquagésimo spin-off de Star Wars. É a mesma novela sendo contada de um jeito mais tosco.

Se fosse pra vilipendiar, era melhor ter deixado a Odete morta em paz.